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As
        Razões do Amor

Autor:
      
      Rubem Alves teólogo,
      filósofo e psicanalista brasileiro. Rubem Azevedo Alves nasceu em 1933,
      Boa Esperança, Minas Gerais. Famoso cronista.
Fonte: Crônica publicada no Correio Popular; Campinas; em 14/05/92

Os
      místicos e os apaixonados concordam em que o amor não tem razões.
      Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa:
      "A rosa não tem "porquês". Ela floresce porque
      floresce."
Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema As Sem-Razões do Amor. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento.
"Eu
      te amo porque te amo..." - sem razões... "Não precisas ser
      amante, e nem sempre sabes sê-lo." Meu amor independe do que me
      fazes. Não cresce do que me dás. Se fosse assim ele flutuaria ao sabor
      dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de
      amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra.
"Amor
      é estado de graça e com amor não se paga."
Nada
      mais falso do que o ditado popular que afirma que "amor com amor se
      paga". O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada
      me deves. Como a rosa que floresce porque floresce, eu te amo porque te
      amo. "Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no
      eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários... Amor não se
      troca... Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo..."
Drummond
      tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados
      acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não
      estar apaixonado (o que é uma pena...), suspeito que o coração tenha
      regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse
      que "o coração tem razões que a própria razão desconhece".
      Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão
      escritas numa língua que desconhecemos.
Destas
      razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha
      conhecimento, e se perguntava: "Como decifrar pictogramas de há 10
      mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial
      é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco." O
      amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?
Ao
      apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a
      entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta
      proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso
      se perdeu: quando o amor - frágil bolha de sabão - não contente com sua
      felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não
      sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões.
      Kierkegaard comentava o absurdo de se pedir aos amantes explicações para
      o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio.
      Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor - sem explicar.
      E eles falarão por dias, sem parar...
Mas
      - eu já disse - não estou apaixonado. Olho para o amor com olhos de
      suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao
      contrário do Drummond, as cem razões do amor...
Vou
      a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto
      de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente
      aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais
      escrita. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais
      fazer: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?" Imaginem que
      um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo
      quando te amo?" Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois
      esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao
      amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas
      palavras de Hermann Hesse, "o que amamos é sempre um símbolo".
      Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa
      sobre a terra.
Variações
      sobre a impossível pergunta:
"Te
      amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa,
      que não conheço, mas que me parece ver aflorar no seu rosto. Eu te amo
      porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa
      encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios... Como Narciso, fico
      diante dele... No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura...
      Por isto te amo, pelos peixes encantados..."(Cecília Meireles)
Mas
      eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam.
Escondem-se.
      Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos.
Eu
      te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão
      de os possuir. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que,
      por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a
      Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como
      desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E
      minha busca recomeçará de novo..."
Esta
      é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o
      rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo
      (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. "O amor
      começa por uma metáfora", diz Milan Kundera. "Ou melhor: o
      amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em
      nossa memória poética."
Temos
      agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce, vive e
      morre pelo poder - delicado - da imagem poética que o amante pensou ver
      no rosto da amada...
